Entrevistas com Miura em 2019

Essas são as mais recentes entrevistas de Miura que foram concedidas aos franceses. A primeira foi feita por um jornalista do jornal leFigaro e consiste em uma gigantesca e esclarecedora entrevista onde são reveladas várias informações inéditas. A segunda entrevista foi feita pela editora Glénat responsável pela publicação de Berserk na frança, e foi um bônus em comemoração ao lançamento do volume 40 por lá.

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Entrevista de Kentaro Miura concedida em 2019 para o jornal francês leFigaro:

Obs: Sr.Nagashima é o atual editor de Berserk e da Young animal.

[ENTREVISTADOR] – Os primeiros capítulos de Berserk foram publicados em 1989, quando você ainda era um jovem mangaká inexperiente. Quais eram suas ambições na época e como você vê essa longa aventura editorial hoje?

[MIURA] – Minha maior ambição na época era viver do mangá. Ou se eu não conseguisse me tornar um mangaká, encontrar um mestre que me desse uma posição como assistente suficiente para encher meu prato. Eu era a pessoa mais feliz do mundo quando [uma vez que me tornei profissional], em vez dos 500 ¥ que estava esperando para comprar um quadro, recebi 5000 ¥. Eu sinto que já percorri um longo caminho desde então! Eu realmente não achei que conseguiria chegar tão longe naquela época.

[ENTREVISTADOR] – Quando você começou a escrever seu mangá, o “berserker” das sagas islandesas era apenas uma inspiração difusa ou você já tinha em mente a armadura de mesmo nome, essencial para o enredo, mas que apareceu no final do capítulo 222?

[MIURA] – Minha inspiração foi difusa. Na época, as informações sobre o berserker eram quase inexistentes. Havia de fato uma aparição da palavra “berserga” nos romances da série Botomuzu gaiden, mas quase ninguém no Japão sabia a que se referia.

[MIURA] – Eu escolhi porque achei que seu aspecto misterioso se encaixaria bem.

(Sr.Nagashima) – É verdade que não sabíamos o significado dessa palavra na época.

(Sr.Nagashima) – Como Guts?

[MIURA] – Originalmente, a imagem de Guts veio essencialmente do primeiro Mad Max. Resumindo, deixar um mundo com um herói sombrio que está sedento por vingança leva você a imaginar um personagem furioso. Quando, guiado por sua fúria, ele despejaria esta raiva sobre inimigos dominantes. Devemos insistir em seu fanatismo se quisermos permanecer coerentes. É por isso que achei que “Berserk” seria um título perfeito para representar o meu universo.

(Sr.Nagashima) – Então, você não pensou sobre a armadura Berserk desde o início da série? Você criou este elemento durante o desenvolvimento do seu mundo?

[MIURA] – Eu não iria tão longe a ponto de dizer que tudo estava em ordem para tornar este elemento óbvio. Na verdade, o mundo dos mangás é marcado pela inflação, com a chegada de inimigos cada vez mais incríveis acompanhados por armas cada vez mais poderosas. Essa é uma situação frequente em mangás shonen, que não tem tempo para controlar essa inflação. Rapidamente avança a um ponto da qual, a menos que por um golpe de sorte, já não é possível pará-lo. Mas no meu caso, e com todo o respeito à meu primeiro editor, minha história foi publicada em um periódico de segunda categoria, o que me permitiu manter essa inflação sob controle. Especialmente desde o início, a publicação era mensal. Por isso, sempre tive o cuidado de deixar a inflação se desenvolver, mas em pequenos saltos sucessivos … sinto que estou falando de economia. Onde a melhor inflação é de 2%, 3%, 4%, uma baixa inflação..

Isso permitiu um desenvolvimento regular da história. Na minha opinião, o primeiro salto ocorreu com a chegada do Bando do Falcão, a primeira grande mudança de escala da série. Depois houve o desenvolvimento do aspecto mágico com Schierke. Como resultado, tive que resolver o problema do fortalecimento físico de Guts. Com a chegada de seres mágicos e sobrenaturais, fui obrigado a dar-lhe algo sobrenatural também, se quisesse preservar o dinamismo trazido por suas lutas corpo-a-corpo. Ao pesquisar, encontrei a solução que você conhece. Uma armadura que te deixa louco. É perfeito para um berserk. Dizem que o antigo berserker estava tomando drogas para ficar com raiva. De certo modo, a dor é a droga de Guts, a coisa toda formava um todo coerente.

(Sr.Nagashima) – No início da série, Guts mata os apóstolos. Você já estava pensando em torná-lo mais forte então?

[MIURA] – Neste primeiro período, quando Guts derrotou os apóstolos em um duelo, sua força foi perfeitamente adaptada. Mas quando o herói se vê diante de uma série de inimigos, alguns dos quais usam magia, ele precisa de ajuda. Sem ir tão longe para transformá-lo em uma criatura avassaladora, ele ainda precisa de algo mais.

(Sr.Nagashima) – E quando ele se encontra diante da “mão de Deus” …

[MIURA] O impulso é ainda mais necessário. Como Guts, sendo humano, só poderia melhorar seu corpo e mente, eu me torturava a cada vez para encontrar uma solução. Porque eu não posso dar a ele uma arma definitiva, ou a habilidade de voar pelo céu.

(Sr.Nagashima) – Para preservar o prazer de ver Guts atirar-se fisicamente contra seus inimigos.

[MIURA] – Sim, devo encontrar uma inflação física e mental que permaneça aceitável para o leitor. Eu sempre fico de olho neste ponto.

[ENTREVISTADOR] – Desde o “protótipo” enviado para as editoras em 1988, você havia apresentado um companheiro cômico a la Disney, o elfo Puck, em nítido contraste com a personalidade de Guts e a atmosfera muito sombria do mangá. Mais tarde, Isidro e Magnifico virão desempenhar papéis semelhantes. Por que você incluiu esses personagens? Como autor, como você se relaciona com esses pequenos brincalhões?

[MIURA] – Esses parceiros estão tradicionalmente presentes nos mangás japoneses. ( o autor usa a palavra “kyogen-mawashi”, que vem do tradicional teatro kyôgen japonês. O kyogen-mawashi é um ator responsável tanto pelo papel do narrador quanto pela explicação da situação). Ao lado do herói que tem a força para levar a história adiante, há, por exemplo, seu amigo complexado que o admira, ou um pessoa que dá uma olhada comum na história para nos explicar a situação. É assim que é no mangá japonês. Ainda temos personagens que assumem esse papel. Em Berserk, tal papel era necessário no início da série, na época do Espadachim Negro, porque Guts não tinha como obter a simpatia dos leitores. Então Puck estava lá para olhar a história com os mesmos olhos do leitor, um olhar normal. Embora ele seja um elfo, a propósito! Como ele poderia parecer despreocupado em qualquer cena, ele não interferiu na história e foi até mesmo uma ferramenta para avançar: esse foi seu papel durante as primeiras aparições. Se ele passou para um papel cômico, acho que foi porque a atmosfera da série estava ficando mais pesada. Para o leitor, tal papel é semelhante ao acompanhamento de um prato destinado a refrescar o paladar: no Japão, seria o vegetal salgado ou a fatia de gengibre em conserva. No exterior, Puck provavelmente seria uma pickle.

(Sr.Nagashima) – É verdade que agora só vemos o Puck Castanha.

[MIURA] – Ele está fazendo mais e mais aparências nesta forma, sim. Esse tipo de personagem, seja normal ou cômico, é necessário para interromper uma história que tende a se tornar cada vez mais séria e pesada. Especialmente quando esta história é longa. No caso de um filme que pode ser resumido em uma frase, a nuance que tal personagem traz provavelmente não é necessária. Mas os mangás japoneses são muito longos. A normalidade de personagens como Puck é então crucial.

[ENTREVISTADOR] – Frequentemente falamos sobre o design inspirado em seus monstros ou o nível de detalhes em suas configurações, mas raramente sobre seus personagens humanos, que são muito diversos e expressivos. Como você concebe seus rostos?

[MIURA] Até os primeiros capítulos do Bando do Falcão, criei meus personagens exagerando as características de meus próprios amigos e conhecidos, o que naturalmente os deixava vivos, mesmo que eu não os desenvolvesse. Mas essa técnica inevitavelmente acaba mostrando seus limites, quando você é um mangaká. Porque o trabalho de mangaká é sentar em sua mesa, sem a possibilidade de expandir seus relacionamentos humanos. Mais tarde, fui forçado a criar personagens do zero. Às vezes, eu me considero um modelo, mas o que eu gosto de fazer é organizar os personagens em torno do herói Guts para mostrá-lo de maneiras diferentes. Quando olhamos para Guts na frente de Griffith, sentimos que ele é um pouco inferior, que ele deve olhar para Griffith. Ele então aparece como um rival. De frente para Isidro, no entanto, Guts tomou a forma do irmão mais velho. O homem adulto confiante em quem Isidro pode confiar logicamente se tornará um modelo para ele. Diante de Farnese, Guts tornou-se o fundador de uma religião, que revelou seu carisma. Mostrando um personagem em suas diferentes facetas, desta forma, torna-se real. Porque nossa visão de um homem necessariamente mudará dependendo do nosso relacionamento com ele. Essa maneira de fazer as coisas também está ausente da cultura cinematográfica estrangeira, cujos filmes são curtos. É mais adequado para histórias que ocorrem durante um longo período de tempo. Porque um personagem apresentado em uma única faceta não duraria muito tempo.

[ENTREVISTADOR] – Eu entendo que esses personagens estão lá em primeiro lugar para dar profundidade a Guts, mas eu os acho muito vivos também.

[MIURA] – Sim, porque conforme a história se desenrola, há outros personagens que, por sua vez, ficam na frente de seus predecessores. Pegue Isidro, por exemplo. Quando Schierke entra na história, ambos se tornam rivais. É assim que o universo de Berserk se expande, como os neurônios que gradualmente se juntam uns aos outros.

[ENTREVISTADOR] – No momento em que o arco da Era de Ouro começou, houve uma escolha radical e corajosa apoiada pelo seu editor, mas que causou uma diminuição na popularidade entre os leitores … O que você teria feito se o seu “tantô” tivesse pedido que você não matasse o Bando do Falcão ou o trouxesse de volta de um jeito ou de outro?

[MIURA] – Eu teria pensado muito nisso. Porque eu mesmo não tinha certeza.

(Sr.Nagashima) – Você teria aceitado tal pedido?

[MIURA] – Eu acho que teria aceitado se esse pedido tivesse vindo do Sr. Shimada [Gerente Editorial de Berserk Volume 4 até o Volume 38]. Porque confiava nele. Na verdade, era da natureza dele me dar luz verde para matar o Bando do Falcão. Infelizmente, a série posteriormente caiu em popularidade. De qualquer forma, teria sido necessário usar técnicas de roteiro de alto nível, se eu quisesse continuar a série sem matar o bando. De qualquer forma, com tal escolha, Berserk teria se tornado algo completamente diferente. Porque só um caminho teria sido possível, o dos mangás da Jump e o “na verdade, eles não estavam mortos!” Berserk teria se tornado como o mangá Sakigake! Otokojuku [manga shônen de Akira Miyashita publicado no Weekly Shônen Jump de 1985 a 1991. Nesta série cult, os personagens supostamente mortos voltam à vida].

(Sr.Nagashima) – Em retrospecto, acharíamos que a série não tinha muita seriedade.

[MIURA] – Ela teria inevitavelmente se tornado como Sakigake! Otokojuku.

(Sr.Nagashima) – Teria acabado a mil milhas do que é hoje. Adeus ao aspecto sombrio.

[MIURA] – Sim, algo teria sido diferente. Eu imagino que tal Berserk existe, em algum lugar em um mundo paralelo.

(Sr.Nagashima) – Um Berserk muito exuberante.

[MIURA] – Nós teríamos pensado: “Ah, bem! Eles não estão mortos!” Ou então eles teriam se levantado para se tornarem inimigos de Guts.

[ENTREVISTADOR] – É um pouco assustador. Berserk é uma série extremamente rude, com algumas cenas particularmente difíceis (estupros, torturas, massacres de crianças …). Você nunca pensou que estava indo longe demais? Seu gerente editorial já restringiu você?

[MIURA] – Desculpe por essas cenas! Devo dizer que meu editor me defendeu bem. Na época, o chefe do conselho editorial ou superior disse uma ou duas vezes que eu estava indo longe demais. Eu também me abstive várias vezes, dizendo que isso não aconteceria. Você tem que entender que um desenho de mangaká se distancia muito pouco de seu trabalho, o que o leva a se convencer de que suas escolhas são as corretas. Hoje, com esta retrospectiva, me pergunto se minhas escolhas eram realmente necessárias. E então, a situação do mangá japonês também mudou. Na época, o mangá era uma forma de expressão em rápido desenvolvimento. A misteriosa forma de expressão deste arquipélago do Extremo Oriente chamado Japão. O tempo era tolerante, e as paródias que vimos então seriam consideradas hoje como roubo ou plágio. Esta tolerância, que também se aplicava à liberdade de expressão, agora parece incrível. Porque não havia código. E isso, na minha opinião, é o que fez do show o que é hoje. Tradicionalmente, o mangá, como um gênero, sempre foi capaz de superar tabus. Em todo caso, até o momento do Ataque dos Titãs. Este não é mais o caso hoje, quando o mangá se tornou um entretenimento por si só, mas Berserk nasceu em um momento em que essas coisas ainda eram possíveis.

(Sr.Nagashima) – Deve ser dito que hoje, o mangá é acessível através de muito mais mídias, em formas eletrônicas e outras …

[MIURA] – Se realmente quisermos, tudo ainda é possível hoje, mas essas obras estão sujeitas a um limite de idade, com a proibição de menores de 15 ou 18 anos. Eu noto que no Japão, esse limite de idade se aplica ao conteúdo erótico, mas há raramente uma proibição de menores de 15 anos por conteúdo muito violento. Eu me pergunto por que isso. É estranho. E agora estou me desviando da questão.

[ENTREVISTADOR] – Em entrevistas anteriores, você nos disse que trabalha principalmente à noite, quase sem férias. Esse ritmo insustentável foi a causa das várias pausas na publicação? Como o seu trabalho de mangaká é organizado hoje?

[MIURA] – * Choro de sofrimento * Aaah … Obrigado por sua preocupação por mim. E eu ainda tenho o mesmo ritmo!

(Sr.Nagashima) – Então você continua a desenhar como antes.

[MIURA] – Fisicamente, diminuí o ritmo; eu não passo mais as noites sem dormir trabalhando, eu também parei com as folgas. No passado, eu costumava alinhar as noites de trabalho até que o manuscrito fosse desenvolvido, para me dar um ou dois dias de folga para ir comprar vídeos em Akihabara, por exemplo. Mas já não tenho forças para trabalhar assim e, portanto, não tenho mais a oportunidade de tirar essas folgas. Meus pequenos momentos de descanso, eu os aproveito quando saio para comer com meu gerente editorial ou com amigos que vieram me ver.

(Sr.Nagashima) ** Realmente, desculpe-nos. **

[MIURA] – Eu tenho esse ritmo porque gosto de trabalhar assim. Você não precisa se preocupar com isso. Pelo contrário, até acho que estou me saindo melhor do que antes, agora que meu ritmo de trabalho se estabilizou. Eu simplesmente tento, tanto quanto possível, não exagerar; se eu ficar mais devagar, é simplesmente porque estou ficando mais velho.

[ENTREVISTADOR] – A série de romances e de videogame The Witcher em breve será adaptada para TV pela Netflix … A fantasia está em ascensão! Você gostaria que Berserk fosse adaptado como uma série live action? Em caso afirmativo, com qual showrunner responsável e qual ator para Guts? (Você mencionou Rutger Hauer uma vez como inspiração …)

[MIURA] – No começo da minha carreira, isso mesmo, Rutger Hauer. Eu já disse isso em outras entrevistas, mas na época, um filme influenciou incrivelmente minha visão do universo de Berserk. Flesh and Blood (conquista Sangrenta no brasil) com Rutger Hauer no papel principal. Sua imagem de um cara perigoso com um corpo enorme nos filmes The Hitcher (A morte pede carona, no Brasil) e Blade Runner também me impressionou muito. E também o The Blood of Heroes(Juggers: os gladiadores do futuro, no brasil), onde Rutger Hauer é inesquecível. Não há uma versão dublada desse filme no Japão.

(Sr.Nagashima) – Quando esse filme saiu?

[MIURA] – Quando eu estava na faculdade, ou talvez um pouco depois da minha carreira começar. Yukito Kishiro, o autor de mangá que criou Battle Angel Alita ( Gunnm), também foi influenciado por este filme. Eu me lembro de ter visto o episódio do motorball, eu disse para mim mesmo: “ah! Ele foi inspirado por esse filme pela forma de sua armadura!” Assim como eu com a armadura de Guts, a propósito.

(Sr.Nagashima) – Ah, realmente.

[MIURA] – Então, o herói deste filme tem um olho só, também. E ele anda por aí com uma enorme arma no ombro. Eu fui inspirado por esta imagem no passado. Com relação à adaptação de Berserk para o cinema, eu ficaria feliz se isso pudesse acontecer um dia. Eu devo admitir que estou com ciúmes de Yukito Kishiro e sua Alita! (risos)

(Sr.Nagashima) – Nesse caso, prefere que seja filmado no estrangeiro e não no Japão?

[MIURA] – Bem, digamos que um filme como Hagaren poderia ser divertido. Nota:[Hagane no Renkinjutsushi ou Fullmetal Alchemist, adaptado do mangá homônimo] .

(Sr.Nagashima) – Toho está produzindo Kingdom ….

[MIURA] – Se o filme fosse feito aqui, poderíamos imitar por um punhado de dólares que é a adaptação de The Bodyguard [o filme de Kurosawa com Toshirô Mifune na liderança], e trazer a história de volta ao Japão, fazendo de Berserk um “jidai-geki “[um gênero cinematográfico dedicado à história medieval japonesa]. Pode funcionar!

(Sr.Nahashima) – Não seria mais Berserk. Além disso, os atores japoneses poderiam realmente interpretar os personagens do show?

[MIURA] – Poderíamos perguntar aos atores que lembram o Toshirô Mifune. Para um filme no gênero “jidai-geki”.

(Sr.Nagashima) -Transpondo a história para o Japão?

[MIURA] – Nós tínhamos travas de pavio naquela época. Nós poderíamos colocar uma arma assim no braço esquerdo do herói. Também tivemos o “zanbatô” (espadas gigantes).

(Sr.Nagashima) – E Zodd, nós o transformamos em um “yokai” [criatura sobrenatural do folclore japonês]?

[MIURA] – Nós faríamos dele um enorme “oni” [um gigantesco demônio do folclore japonês]. Um “ushi-oni” [literalmente “demônio de vaca”, com corpo de aranha e cabeça de boi], seria o papel perfeito para ele. E para Griffith, por outro lado …

(Sr.Nagashima) – Griffith não teria realmente um lugar nessa adaptação …

[MIURA] – Ele poderia desempenhar um papel semelhante ao de Shirô Amakusa [uma figura histórica, líder da rebelião de Shimabara em 1637]. Na verdade, nós fazemos o filme do jeito japonês ou confiamos em Hollywood.

(Sr.Nagashima) – Eu prefiro a segunda opção.

[MIURA] – Nós temos todo o direito de sonhar.

(Sr.Nagashima) – Basicamente, confiamos o filme a Hollywood. Bem, devemos perguntar a eles?

[MIURA] – Bem … Com Hollywood, você tem que terminar a série antes de contar a história, ou deixá-los fazer o que quiserem com a licença de Berserk. Se lhes for dada a licença, é de se esperar que a adaptação seja fiel ou não seja totalmente. Se o filme foca em Guts, o Espadachim Negro no início da série, o resultado certamente será fiel ao mangá. Por outro lado, se a adaptação fala sobre o Bando do Falcão, você tem que se acostumar com a idéia de que tudo pode ser compactado e planejado pela duração de um filme.

(Sr.Nagashima) – Existe também a solução Netflix Originals.

[MIURA] – É isso mesmo, também existe essa solução hoje em dia.

(Sr.Nagashima) – Com a Netflix, podemos transformar Berserk em uma série de TV.

[MIURA] – Se eu conseguir fazer esse mangá de tal forma que ele mantenha seus fãs até o fim, então falaremos sobre isso novamente. Porque agora eu estou tentando terminar o show de forma limpa.

(Sr.Nagashima) – De qualquer forma, seria bom se a adaptação para um filme pudesse ser feita.

[MIURA] – Tente se tornar presidente da empresa até lá então.

(Sr.Nagashima) – Ou, como essa entrevista será lida na Europa, talvez alguém consiga esse projeto de filme?

[MIURA] – Podemos perguntar ao Guillermo del Toro?

(Sr.Nagashima) – Enquanto estamos nisso, podemos também sonhar alto.

[ENTREVISTADOR] – A reunião entre Guts e Casca é iminente e o confronto com Griffith está próximo. O fim de Berserk está se aproximando? Você calculou que estava em 60-70% da história em 2009, depois de 176 capítulos … Esse número agora duplicou!

[MIURA] – Para a reunião entre Guts e Casca, está feito. Acho que estou sistematicamente errado quando tento estimar esse tipo de atraso. No entanto, é verdade que o primeiro duelo sério com Griffith está se aproximando. Quanto ao progresso geral da série, por outro lado … Está caminhando para o seu fim, com certeza. Mas se eu disser que ainda há um quinto ou um quarto para desenhar, essa estimativa pode ser menor que a realidade. Então eu prefiro não ir em frente.

(Sr.Nagashima) – Deve ser dito que a história ainda está indo bem.

[MIURA] – Eu acho que agora ela vai se concentrar em Guts e Griffith. Estamos logo entrando no trecho final.

(Sr.Nagashima) – É melhor deixar assim para evitar spoilers.

[ENTREVISTADOR] – E quanto ao período pós-Berserk? Eu acho que você teve um projeto de ficção científica em sua cabeça por um longo tempo … Você poderia nos contar mais sobre isso?

[MIURA] – Posso falar sobre você sabe o que?

(Sr.Nagashima) – Na verdade, depende de quando esta entrevista se tornará pública.

[MIURA] – É melhor evitar o assunto, então. No final, dependerá da idade em que termino Berserk. Se eu for muito velho, posso publicar minhas próprias histórias.

(Sr.Nagashima) – Publique-as conosco, neste caso.

[MIURA] – Eu não acho que posso mais levar o ritmo de uma série. Vou enviar os manuscritos assim que tiver desenhado o suficiente. Note, isso é o que eu já estou fazendo.

(Sr.Nagashima) – Você poderia continuar assim, mas com uma publicação ocasional. Quanto ao Glass no Kamen [mangá shôjo popular no Japão escrito por Suzue Miuchi, que conta a história de uma garota que aposta tudo no teatro. A série começou em 1976 e a publicação é muito irregular. O 49º volume foi lançado em 2012 e os leitores aguardam o resto desde então, nota do editor].

[MIURA] – Quando terminar, estarei ocupado recuperando minhas forças. Uma vez que estiver em ótima forma, e sentir que posso continuar, então vou em frente. Afinal, é o destino do mangaká da era Shôwa morrer na mesa de desenho.

(Sr.Nagashima) – Primeiro de tudo, temos que terminar Berserk.

[MIURA] – Eu não me atrevo a sonhar com este novo projeto ainda!

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Com o lançamento do volume 40 na França, a editora que publica berserk por lá (glenat) fez uma mini entrevista com Miura:

GLÉNAT – Dark Fantasy é relativamente raro no mundo dos mangás, mas muito popular na Europa. Por que você escolheu explorar esse gênero? Como você explica o sucesso de sua série?

MIURA – Eu não uso uma varinha mágica, então será difícil encontrar a razão concreta para o sucesso da minha série. Quando se trata de fantasia sombria, minha primeira influência vem de Conan, o Grande; Eu não via a fantasia sombria como um gênero em si, mas sim como o equivalente da fantasia em geral. Fora do Japão, grandes obras de fantasia como O Senhor dos Anéis contêm elementos obscuros. No Japão, no entanto, a fantasia foi popularizada por videogames como o Dragon Quest, destinado a crianças e, portanto, expurgado na origem de seus elementos sombrios. Eu já havia recebido a influência dos romances antes de jogar esses jogos, então eu naturalmente me voltei para a fantasia sombria. Voltando às razões do sucesso da minha série, acho que estava propondo algo novo para o público japonês. Quando se tornaram adolescentes, o público que costumava brincar no mundo da fantasia feito para crianças começou a procurar por outras histórias desse tipo que correspondiam à sua idade; e acho que quando leram minha série, descobriram novos elementos, como a amargura, que chamaram sua atenção, e acharam refrescante abordar uma peça para leitores de sua idade. Quanto ao sucesso no exterior, isso pode ser explicado por um público que já é íntimo desse tipo de histórias?

GLÉNAT – Estamos no volume 40 de Berserk. Esta é uma série que está começando a ser longa. Como você vive essa longevidade e quais foram as principais mudanças entre o início da série e agora?

MIURA – Como eu vivo a longevidade da série? Vamos dizer que eu rezo para que eu consiga terminar isso durante a minha vida!

GLÉNAT – Os fãs também, eu acho!

MIURA – Cuide-se! Eu também cuido de mim mesmo. A principal mudança está lá. Quando comecei a série, estava menos preocupado com o final do que em contar uma história que, de qualquer forma, acabaria mais cedo ou mais tarde; mas hoje percebi que a vida não é eterna. É cuidando da minha saúde que tento completar a série. Em termos de método e ritmo de trabalho, a principal mudança é que me tornei mais lento. Você sabe, eu sinto que estou em uma nave espacial indo em direção a um buraco negro, e quando se aproxima, o fluxo do tempo é alterado. Quando eu trabalho no mangá, eu não tenho a sensação de que o tempo passa de forma diferente e, no entanto, acontece num piscar de olhos! Como se eu estivesse parado.

GLÉNAT – Sua quantidade de trabalho por página evoluiu?

MIURA – Com o tempo, tenho prestado cada vez mais atenção aos detalhes, quase demais. Recentemente, no entanto, tento tornar meu desenho mais legível.

GLÉNAT – …Você também optou por ferramentas digitais.

MIURA – Eu me esforcei para encontrar uma maneira de compensar o ritmo lento do meu trabalho sem encontrar uma solução satisfatória. Durante um período, desenhei inteiramente a lápis antes de fotocopiar as páginas e hoje dediquei-me a ferramentas digitais; por um lado, essas ferramentas aceleraram meu trabalho, mas, por outro, não posso deixar de me concentrar nos menores detalhes; então, passo mais tempo para encontrar o equilíbrio certo no meu desenho.
Em relação ao enredo, no entanto, não vejo nenhuma mudança importante. Em linhas gerais, continua a se desdobrar como eu imaginara originalmente.

GLÉNAT – Quer dizer que desde o começo você sabia que sua série seria tão longa?

MIURA – Não, eu não sabia disso antes dos episódios do bando do Falcão. Concentrei-me em Guts, o Espadachim negro, sem pensar em desenhar uma história de tal magnitude; mas quando me aproximei do bando do falcão, de repente tive mil outras coisas para contar.

GLÉNAT – Berserk gira principalmente em torno da relação entre Guts e Griffith, ambos complexos e simbolicamente muito marcados: a sombra voltada para a luz. Por que inverteu os papéis e fez do herói o cavaleiro negro e o vilão o cavaleiro branco?

MIURA – Desde a minha infância, descobri que os heróis negros tinham classe. Não sei se essa admiração é um fenômeno peculiar ao Japão. Talvez esteja relacionado ao fato de o Japão não estar na área cultural cristã.
Tradicionalmente, a religião cristã descreve dinamicamente o bem e o mal, fazendo uma clara distinção entre os dois. Além disso, todas as principais obras [nascidas na área da influência cristã] permanecem nesse contexto. No Japão, a separação entre o bem e o mal é mais ambígua e, se a escuridão é boa, pode ser apresentada; Este é o caso de Devilman, por exemplo, que eu amo. Tais trabalhos
existem há muito tempo no Japão, eles não são novos. Em suma, não acho que minha série seja uma simples antítese.

GLÉNAT- Sua série explora iconografias muito diversas e incomuns no mangá, da mitologia oriental à Idade Média Européia, através de Lovecraft ou até mesmo do Phantom of Paradise. Como essas imagens são impostas a você?

MIURA – Para a composição, tudo vem de Akira. Quando eu era estudante, e até o começo da minha carreira, continuei treinando enquanto assistia Akira. Eu realmente queria adquirir essa ótima técnica de composição, com seus diferentes quadros e múltiplos ângulos de visão.
Sim, eu realmente aprendi muito com Akira. Quanto ao meu estilo de desenho, vamos pegar os monstros: quando desenho Berserk, já tenho uma representação realista em mente. Em suma, quero dar ao leitor a impressão de que esse outro mundo que ele está contemplando é um mundo muito real. A fantasia japonesa atual, seja desenhos ou estilo, tem um alto grau de sucesso. Ela não está procurando por algo realista. Mas não havia todos esses animes na minha época; as únicas representações visuais da fantasia a que eu tinha acesso eram, no cinema, filmes como Conan, ou Excalibur.
Ao vê-los, você naturalmente acaba pensando que um autor de fantasia deve ter uma representação mental clara desse tipo de mundo. Como com Willow, por exemplo. O que leva você a desenhar em um estilo realista. Você é então forçado a imaginar como colocar seus monstros de maneira natural. E assim, imaginar como poderiam realmente ser esses monstros que vemos nas ilustrações da Europa na Idade Média, por exemplo. É o mesmo para os personagens, se o seu mundo se parece com a Europa na Idade Média, você vai pensar sobre os elementos, os materiais, o estilo da época. Isso tudo fez o meu estilo de desenho atual.

GLÉNAT- Sim, você disse que queria criar um mundo à beira do banal …

MIURA – Tenho a impressão de que os filmes e animes atuais estão passando por uma especialização de tarefas sempre maiores, com pessoas encarregadas de desenhar, outras encarregadas da história. Essa especialização leva a uma separação dos diferentes domínios. Durante minha infância, muitos heróis tiveram uma aparência simples e fácil de memorizar. Mas hoje, as crianças não podem mais reproduzir o desenho dos brinquedos que têm em suas mãos. Isso ocorre porque, entretanto, nasceu um novo emprego. Um trabalho que consiste em criar desenhos mais impressionantes do que os outros. Mas há uma diferença entre um design complexo e um design que atenda às necessidades gerais do trabalho.

GLÉNAT – Vemos isso com o atual Kamen Rider, as crianças não podem reproduzir esses personagens.

MIURA – É que o design destinado a vender bonecos e o design coerente com o universo de Kamen Rider são, finalmente, duas coisas diferentes. Essa pode ser a diferença entre o trabalho em equipe e o trabalho solitário, mas, no que me diz respeito, optei por seguir o método antigo.

GLÉNAT – Quais são seus mestres, suas fontes de inspiração gráfica? Você reconhece, na nova geração de mangakas, herdeiros?

MIURA – Como eu disse anteriormente sobre Akira, eu fui muito influenciado por Katsuhiro Ôtomo (Akira) graficamente; Além dos gráficos únicos, a atmosfera e o impacto do desenho vêm de Go Nagai (Devilman); meus truques vêm de Dororo [por Osamu Tezuka] e Cobra [por Buichi Terasawa].

Como você pode ver, eu tive múltiplas fontes de influência. Eu também inconscientemente absorvi o trabalho de muitos outros escritores de mangá. Aqueles que não estão familiarizados com o Japão podem não conhecer alguns nomes que vou citar, mas eu comecei a imitar mangás da editora Gakken, depois os de Shinji Mizushima, Hijiri Rei e Leiji Matsumoto, ao mesmo tempo, Buichi Terasawa.

Após isto, quando passei da escola para a faculdade, eu queria ser capaz de fazer desenhos realistas, e comecei a imitar, mesmo que não fosse mangaká, Noriyoshi Orai ou Naoyuki Kato, o ilustrador de Guin Saga (novel). Em resumo, melhorei minha técnica passo a passo, imitando incansavelmente todos os tipos de ilustrações e várias outras coisas. Depois dessa fase em que imitei os ilustradores, senti que tinha que atacar diretamente o corpo humano, então fui aos prontuários de anatomia humana dos livros de [Thomas] R. Gest, por exemplo. Eu estudei copiando esses desenhos. Durante um período, eu também copiei muitos mangás shôjo, os de Moto Hagio em particular.

GLÉNAT – Sim, nós sentimos que você foi influenciado pelo mangá shôjo.

MIURA – E também pelo anime. De fato, enquanto eu esperava para entrar na universidade para construir meu estilo neste fundamento de influências conscientes e inconscientes, não posso nomear todos com certeza. O que é certo é que minhas influências são numerosas.

GLÉNAT – Esses autores são mestres para você?

MIURA : Todos eles foram, na medida que os imitei.

GLÈNAT – Você tem herdeiros na nova geração de mangakás?

MIURA – O trabalho do mangaka é muito pessoal; todos nós nos tornamos mestres seguindo cada um o nosso próprio caminho, é por isso que eu acho que nenhum de nós tem um herdeiro digno do nome. Quando entramos no mundo dos mangás, nosso estilo pode parecer com outro autor, ele sempre acabará tomando uma direção diferente. É por isso que eu acho que a própria noção de herdeiro está faltando no mundo dos mangás japoneses. ■

3 Comments

  • Entrevistador: Seu trabalho tem uma legião de fãs mundo afora, Miura-sensei. E muitos com certeza se perguntam quando e como essa obra magistral acabará. Podemos ao menos pressupor que o final não será a decepção que Game of Thrones foi?

    Miura: Bem, não posso dizer muito quanto à isso. Tudo o que posso dizer é: Quem nasceu pra ser Game of Thrones jamais será Berserk.

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