Entrevista de Kentaro Miura em 1999 para uma revista Italiana

A seguinte entrevista com Kentaro Miura por Davide Castellazzi foi originalmente publicada na Jappamondo n. 3 (uma revista italiana) em Novembro de 1999 e reimpressa na edição 8 da “Scuolla di Fumetto” em fevereiro de 2003.

Davide: Berserk denota uma certa paixão pela Idade Média européia. Como isso surgiu e o quanto influenciou em seu trabalho?

Miura: As informações que temos no japão em relação à fantasia ocidental são um pouco estranhas. Eu acho que os japoneses são sem sombra de dúvidas, o povo asiático que mais ama o gênero de fantasia européia. Isso talvez se dê também pela história do período pós-guerra. A visão dos valores desse país, no ocidente e em qualquer outro lugar tem sido entendida erroneamente por um longo tempo: Eu acredito que é expressado de uma forma marcante em certos tipos de fantasia onde determinados sonhos e imagens são transportados para o papel. A maior parte das crianças japonesas tem mais familiaridade com cavaleiros cujo corpo é protegido por armaduras do que samurais e seus chonmage ( o típico penteado samurai ). A fantasia corresponde apenas à magia da espada. Eu também, pelo que posso lembrar, cresci com essa visão. Ao desenhar mangás de fantasia, quero realizar histórias que envolvam o leitor.  Quando eu me dedico em examinar profundamente os sentimentos daqueles que fazem parte do cenário, se torna natural  me encontrar novamente na Idade Média européia. Naturalmente não é a Idade Média verdadeira, mas uma imagem  falsa, recriada da Europa daquela época, que faz tanto sucesso em um país oriental como o japão. Provavelmente desenhos sobre samurais ou ninjas feito por um ocidental iriam parecer estranhos aos nossos olhos japoneses. Mas talvez o mesmo mundo medieval de Berserk pareça estranho aos ocidentais, não é? Na verdade eu estou surpreso pela aceitação que Berserk recebeu, não pelo atual público japonês o qual é direcionado, mas pelos leitores do lugar em que a história se baseia, que são da Europa, em particular, da Itália…

Davide: Eu também notei referências a ilustradores e pintores de arte bizarra como Escher (1898-1974,  ilustrador e matemático especializado em “ilusão espacial”) e Hieronymus Bosch (1450-1516, pintor flamengo com predileção por representações monstruosas). Você estudou o trabalho deles?

Miura: Eu aprecio ambos Bosch e Escher, dos quais eu também tenho a coleção dos trabalhos. Ademais, eu também gosto das gravuras de Pieter Bruegel, o jovem (1564-1638, autor de representações obssessivas de cenas infernais)  e Gustav Doré (1832 – 1883), escultor, ilustrador e pintor francês, famoso por suas ilustrações da Divina Comédia), enquanto que entre os cartunistas eu admiro Frank Frazetta ( 1828-2010, famoso ilustrador e cartunista americano) e Luis Morrison.

Davide: Em Berserk parece coexistir dois gêneros: a aventura histórica e o terror fantástico, mas me parece que o segundo acabou dominando, você concorda?

Miura: Berserk é antes de tudo, uma fantasia. As partes históricas tem sido inseridas visando aumentar o sentimento de realidade, remetendo o leitor ao local da ação. A princípio eu decidi fazer a coexistência desses dois gênero de modo que os leitores casuais também lessem, como aqueles que não sentem um interesse particular por fantasia. Eu não queria fazer um trabalho para fãs desse gênero exclusivamente.

Davide: O longo flashback da história do Bando do Falcão possibilita que a história “alce vôo”. Você  havia previsto isso desde o início?

Miura: Os mangás que eu pessoalmente prefiro são aqueles em que o leitor consegue se afeiçoar aos personagens, que gere simpatia e compaixão por eles, que faça o leitor se identificar com eles. Como um poema em prosa por definição, eu considerei que seria melhor contar a vida do protagonista toda de uma vez para fortalecer o amor dos leitores por Guts…Com certeza, porém, isso se prolongou de uma forma inesperada! Mas agora o que está feito, está feito. Mas apesar de minha inexperiência, eu creio ter dado um bom toque final ao trabalho que obteve êxito em criar empatia.

Davide: Um dos pontos fortes de Berserk durante o flashbackfoi a simples riqueza de personagens. Você se arrepende pelo sacrifício do Bando do Falcão?

Miura: É estranho porque isso foi algo que fiz com muita serenidade. Permitir ser levado por um certo personagem não é muito natural para aquele que criou a obra, como pode ser para os leitores. O que importava para mim era que no mangá a aparição de tais personagens tinha um sentido: há momentos para se viver e momentos que nos confrontamos com a morte…Eu não sei se isso parece estranho, mas é algo que significa muito para mim.

Davide: Você tem acompanhado a produção do anime de Berserk¹? E o que você achou do resultado final?

Miura: Para a produção da série de Tv eu sempre estive engajado e ocupado demais com meus compromissos, mas eu não acho que tenha sido um desperdício de tempo ou de dinheiro. Nos próprios limites, todos as pessoas  envolvidos no anime tem feito o seu melhor . Naturalmente eu também tenho colaborado com prazer quando meu cronograma permite.

Davide: Ao invés você tem colaborado com um jogo de Dreamcast²…

Miura: O anime é focado no Bando do Falcão, praticamente apenas na história do Espadachim Negro. O jogo é algo diferente. Talvez por essa ser a primeira mistura midiática relacionada a Berserk e tenha aborrecido as idéias de quem criou intimamente uma imagem de Guts sendo apenas o Espadachim Negro. Felizmente, em comparação ao anime, eu tenho tido muito mais tempo disponível para acompanhar.

Davide: Berserk ocupa você totalmente, você acha que no futuro irá retomar seu trabalho com “Japan”³ ou você está pensando em outra história?

Miura: Eu não tenho intenção de retomar Japan. Todavia, mais cedo ou mais tarde eu quero tentar desenhar alguma coisa de ficção científica. O extraordinário fascínio de ser mangaká consiste apenas na possibilidade de sempre criar mundos diferentes que não são encontrados em lugar nenhum.

¹ – Kenpuu Denki Berserk – Animação de 1997 – 1998
² –  Sword of the Berserk: Guts’ Rage – Jogo de Berserk para Dreamcast lançado em 1999
³ – Japan – Mangá de Volume Único desenhado por Miura e escrito por Buronson ( Hokuto no Ken)

Agradecimentos à Amanda Matias pela tradução, a Miki Moz pelo material italiano e ao fórum Sk.net.

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